Ajuste fiscal com custos sociais marca 100 dias do governo Milei

Presidente da Argentina, Javier Milei 26/01/2024 REUTERS/Agustin Marcarian
© REUTERS/Agustin Marcarian

Por Agência Brasil — O presidente argentino, Javier Milei, completa nesta terça-feira (19) os primeiros 100 dias de governo, limitado pela ausência de leis aprovadas no Parlamento e desafiado a mostrar benefícios do esforço de um ajuste orçamentário com custos sociais.

“Depois de muitos anos, temos na Argentina um governo que tenta resolver os problemas sem adiar soluções nem empurrar as decisões antipáticas para debaixo do tapete. É um governo com diagnóstico correto e objetivo claro, mas com problemas de implementação devido à minoria no Parlamento”, afirma à Lusa o economista Luis Secco, diretor da consultora Perspectiv@s Econômicas.

“Vejo a opinião pública e o mercado dispostos a apoiar o governo porque, pela primeira vez, pretende baixar o déficit orçamentário, mas para estabilizar a economia e voltar a crescer, gerando empregos, precisa de uma mudança de regime que o Parlamento nega. Sem medidas, estamos perante uma mudança de regime incompleta, com um plano de estabilização parcial. Por enquanto, pagam-se os custos e não aparecem os benefícios”, adverte Secco.

Milei chegou à Presidência com 55,7% dos votos, apenas 10% do Senado e 15% da Câmara de Deputados. Devido à minoria parlamentar, não conseguiu ainda aprovar uma única lei.

“Este é um governo muito ambicioso, reformador e com objetivos maximalistas, algo que surpreende devido à assimetria com o seu poder real em termos institucionais, territoriais e legislativos. Milei tem vontade política muito definida, mas esbarra na sua personalidade agressiva e de confrontação. Pelos seus modos e pela sua inexperiência política”, diz o cientista político Sergio Berensztein. “É um presidente que se tornou seu principal obstáculo”.

No começo de fevereiro, diante da iminente derrota na Câmara, decidiu retirar do debate o pacote de leis chamado “Lei Ônibus”, devido aos 664 artigos iniciais. Na semana passada, o Senado reprovou decreto com 366 medidas, deixando os instrumentos de governo à mercê da decisão da Câmara dos Deputados.

Segundo Milei, essas mil medidas iniciais de reformas do Estado e desregulamentação da economia representam apenas 25% das previstas. “Restam outras 3 mil medidas à espera”, avisou.

Porém, se ainda não conseguiu aprovar nenhuma lei, também praticamente não perdeu capital político nem apoio popular, apesar da maior inflação do mundo neste momento.

Desde que assumiu em dezembro passado, o governo Milei acumula índice de inflação de 71,3%, consequência de uma desvalorização inicial de 120% e da liberalização de preços, muitos dos quais congelados durante o governo anterior de Alberto Fernández, apesar da inflação acumulada de 1.020%.

“Entre as razões dessa aparente contradição vemos que parte do eleitorado repudia o sistema político e vê na valentia do discurso presidencial um atributo positivo. Também há um cansaço social com a política tradicional e uma significativa parcela da população que entende as dificuldades atuais como herança do governo anterior. Essa compreensão baseia-se em que todos sabiam que os primeiros meses seriam difíceis, com custos significativos”, diz Berensztein.

“Os eleitores de Milei sabiam que seria assim. Como candidato, ele nunca mentiu. Sempre disse que haveria um ajuste e que haveria muita inflação no princípio. Por isso, manteve o apoio da opinião pública, apesar dos custos de medidas antipáticas”, lembra Luis Secco.

No entanto, durante a campanha, Milei prometia usar uma “motosserra” como símbolo do corte nos gastos públicos, prometendo que, desta vez, o ajuste seria pago pelo que chama de “casta política”, a elite do poder que mantém privilégios à custa do Estado. Porém, até agora, mais da metade do esforço vieram do efeito de diluição de salários e reformas.

Sob promessa de reverter o déficit orçamentário anual de 6,1% em 2023, Milei conta como vitória um superávit financeiro nos dois primeiros meses do ano. “A premissa de déficit orçamentário zero é inegociável”, garante o presidente.

Segundo a consultoria Empiria, com base nos dados oficiais, a média dos salários em janeiro ficou cerca de 7% abaixo do limiar de pobreza, evidenciando perda generalizada de poder de compra. Nos últimos três meses, os preços de produtos básicos ficaram acima dos praticados na Europa ou nos Estados Unidos, com salários dez vezes menores na Argentina.

“Se a inflação não diminuir de forma clara, provavelmente o apoio [a Milei nas pesquisas] cai porque as pessoas vão sentir que fizeram todo o sacrifício sem obter os benefícios. Quanto mais a inflação durar, mais problemático será”, aponta Secco.

O presidente promete à sociedade que, “desta vez o esforço vai valer a pena”, enquanto muda de estratégia. O fracasso inicial, com medidas ambiciosas sem negociação prévia com o Parlamento, ensinou a importância do ‘jogo de cintura’ político com governadores e legisladores, antes de reenviar os projetos de lei.

“Milei precisa mudar sua atitude, delegando e adotando maior flexibilidade. Tem de entender que ceder não significa custo de reputação. Nenhum acordo pode ser fechado com esse grau de obsessão”, afirma Sergio Berensztein.

“Se Milei tivesse adotado essa postura antes, talvez tivéssemos três ou quatro leis prioritárias aprovadas. Em vez disso, temos economia em recessão, com queda do poder de compra que leva a tensões e pressões sociais. Acredito que o governo ainda tenha chances de conseguir um plano econômico mais sustentável, mas estamos no limite e já começam a surgir demoras preocupantes”, observa Luis Secco.

“A pergunta dos agentes econômicos e da população em geral é quanto tempo isso aguenta. Nós, economistas, não sabemos por quantos meses vai durar a paciência social, nem mesmo o próprio Milei sabe”, questiona Secco.

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