Prejuízos da dependência digital em jovens é pauta de audiência pública na Assembleia Legislativa

O evento foi proposto pela deputada estadual Cristiane Dantas. — Foto: Assessoria de Comunicação

A Assembleia Legislativa do RN promoveu debate, em audiência pública nesta segunda-feira (14), acerca dos impactos da dependência tecnológica na infância e adolescência. O evento foi proposto pela deputada estadual Cristiane Dantas (SDD) e contou com a participação de representantes do Executivo estadual e municipal, médicos especialistas, psicólogas que trabalham diretamente com o tema e público envolvidos, além de outros membros da sociedade civil.

Segundo a deputada Cristiane Dantas, as tecnologias de informação estão criando uma nova dinâmica social e alterando o modo de vida das pessoas e a maneira de se relacionarem.

“A pesquisa nacional por amostra de domicílios, do IBGE, em 2021, revelou que mais de 155 milhões de brasileiros maiores de 10 anos possuem celular para uso pessoal. 84,4 % da população da época. Outro estudo, divulgado pela plataforma de mídia digital ‘Turbine’, mostra que 20% dos brasileiros não ficam mais de 30 minutos longe do celular. O acesso à tecnologia móvel, especialmente após a pandemia, é apontado por estudiosos como um dos fatores que contribuem para a dependência tecnológica – ou nomofobia – que é o medo de estar sem acesso ao celular”, revelou.

Ainda de acordo com a parlamentar, pais de crianças e jovens nascidos a partir dos anos 2000 enfrentam diariamente o desafio de lidar com uma geração de nativos digitais, que já nasceu hiperconectada.

“Já é possível notar os efeitos de tanta exposição a telas, especialmente no que se refere ao uso problemático de mídias interativas, popularmente conhecido como dependência tecnológica. E quando se trata de criança e adolescente os impactos são significativos para o desenvolvimento”, alertou.

Cristiane Dantas disse também que essa situação tem sido responsável pelo surgimento ou agravamento de doenças mentais, como depressão, ansiedade, síndrome do pânico, distúrbios alimentares e do sono; e físicas, como a obesidade e a bulimia.

“O déficit de atenção e a queda no rendimento escolar também são outros aspectos a serem observados. Nesse sentido, dei entrada em um projeto de lei que visa contribuir para a melhoria da educação e da cidadania digital. O foco é prevenir a dependência tecnológica e promover maior controle do uso de tecnologias nas escolas. O projeto prevê ainda capacitação para os professores e a comunidade escolar”, detalhou.

Concluindo seu pronunciamento, a deputada destacou ainda que a preocupação quanto à dependência tecnológica ocorre a nível mundial.

“Um relatório publicado pela Unesco (Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura), no fim de julho, propõe a proibição dos smartphones nas escolas e alerta para o uso excessivo das ferramentas tecnológicas na educação de crianças e jovens. Segundo a entidade, há evidências de que o uso excessivo de celulares está relacionado à redução do desempenho escolar. Alguns países como França, Holanda, Bélgica, Espanha e Reino Unido já adotaram a proibição do uso do celular no ambiente escolar”, finalizou.

Primeiro convidado a discursar, o empresário e cantor César Neto deu um depoimento emocionante sobre um fato que aconteceu na sua vida e está diretamente relacionado ao tema.

“Já faz dois anos que o meu ‘Dia dos Pais’ não é mais o mesmo, porque infelizmente o meu filho Lucas, devido a uma brincadeira na internet, teve sua vida ceifada por pessoas que se autodenominam haters. Ele foi totalmente massacrado na internet, e eu não consegui nem ler as coisas que falaram para ele. Depois disso, ele não resistiu, não aguentou a pressão e, no dia seguinte, tirou a própria vida”, contou.

Para César Neto, a iniciativa da Assembleia Legislativa é de suma importância para a sociedade.

“Essa audiência serve para abrir os olhos dos professores, diretores, pais e estudantes. Vocês podem não ter noção agora, mas é cada vez mais comum vermos jovens com depressão, ansiedade e com receio de contar aos pais. A facilidade que vocês têm hoje nas mãos não existia na minha época. Hoje nós não temos um celular nas mãos, nós temos um mundo. A gente consegue saber de tudo numa fração de segundos. É claro que a tecnologia não tem só coisas ruins. Mas infelizmente tem o lado trágico e cruel, e foi exatamente desse lado que o meu filho foi vítima”, lamentou.

A psicóloga e palestrante Débora Sampaio, que se intitula “ativista da saúde mental de crianças e adolescentes”, iniciou sua exposição dizendo que não tem como falar do assunto sem abordar a relação dos jovens com os dispositivos eletrônicos.

“E a pandemia teve um efeito catalisador. Nós tivemos que jogá-los para as telas, e agora está sendo difícil de tirá-los. O mundo virtual mudou completamente a nossa forma de pensar, de sentir e se relacionar. E para as crianças e adolescentes isso é muito mais sério, pois eles são vulneráveis, já que a área do cérebro responsável pelos impulsos, pelo ‘pensar antes de agir’, o córtex pré-frontal, só se forma com 21 anos. Novos estudos já aumentam essa idade para 25”, explicou.

A psicóloga esclareceu também que a exposição excessiva às telas pode tornar as crianças impulsivas e mal-humoradas; elevar os níveis de ansiedade; e contribuir com a falta de sono e déficit no aprendizado.

“Os dados que estamos vendo atualmente são extremamente assustadores. A neurociência nos mostra que as crianças e adolescentes que nasceram com essa relação tecnológica muito próxima já acusam transformações em áreas do seu cérebro. Um estudo recente provou que os adolescentes e as crianças estão cada vez menos empáticos e solidários, menos sensíveis ao que o outro pensa e sente, e isso afeta diretamente o seu desenvolvimento fisiológico”, afirmou.

Ainda para Débora Sampaio, a mais nova forma de negligência familiar é o celular.

“E a gente não tem ideia do impacto que isso tem. Na internet, há vídeos de bebês assistindo pelas telas, e eles ficam completamente alterados. Infelizmente, o uso está cada vez mais precoce e contínuo. E essa relação adoecida e disfuncional traz alterações neuroquímicas. Então, não é uma questão de achismo, mas de ciência. Não se pode mais negligenciar esses fatos”, concluiu.

Na sequência, Eveline Ribeiro, psicóloga escolar e clínica, falou sobre o papel das entidades educacionais dentro do assunto.

“Antigamente se dizia muito que escola era lugar só de aprender as matérias e em casa é que se educava. Mas hoje não existe mais isso. A escola é, sim, um lugar para cuidar do desenvolvimento de crianças e adolescentes. É na escola que aprendemos a nos relacionar, a lidar com as pessoas, com as nossas frustrações, é onde desenvolvemos nossa cognição”, explicou.

Eveline Ribeiro pontuou, em seguida, que pela primeira vez na história está sendo registrado que uma geração tem a capacidade intelectual menor do que a geração passada. “E esse fato está diretamente relacionado com o uso de telas”, acrescentou.

Ela trouxe ainda os resultados do relatório da Unesco deste ano, a respeito da Tecnologia na Educação.

“O relatório diz que não há estudos que comprovem a contribuição do uso da tecnologia para a melhoria da educação. Além disso, alerta que a tecnologia na educação exclui muito mais pessoas. Por exemplo, na época da pandemia, 31% dos estudantes de todo o mundo não tiveram acesso. E o ritmo acelerado do desenvolvimento tecnológico faz com que não haja tempo suficiente para sabermos se as ferramentas são eficazes ou não. Outro ponto negativo é que não há regulamentação nem controle com relação ao seu uso. E a tecnologia pode ter um impacto muito negativo se for usado de forma inadequada ou excessiva”, divulgou.

Segundo o médico pediatra Genner Barbosa, “tudo o que foi dito no debate não é fantasia da nossa cabeça”.

“É uma questão física e química. São substâncias que estão na nossa mente. Quando algo nos gera prazer, o cérebro lança a dopamina. E, nas crianças e adolescentes, não existe o freio da tomada de decisões, porque o cérebro não está totalmente formado ainda. E é aí que está o perigo”, alertou.

O médico elencou alguns problemas gerados pela utilização excessiva das tecnologias pelos jovens.
“Irritabilidade, depressão, ansiedade, TDAH, transtorno de sono e alimentação, obesidade, anorexia, bullying, cyberbullying, baixa autoestima, ansiedade e depressão. Viram que é um círculo vicioso? Com problemas físicos e emocionais. Não tem o que discutir, está acontecendo. E por que estamos fazendo esses eventos no mundo todo? Porque está muito frequente, muito excessivo. Não queremos tirar a tecnologia de vocês, ela é muito boa. Nós só temos que saber usar”, finalizou.

Em seguida, o especialista em segurança da informação, Clézio Azevedo, discorreu a respeito do surgimento da internet, dos avanços da tecnologia e também sobre alguns crimes virtuais.

“A sextorsão não necessariamente precisa utilizar um nude ou um vídeo. Pode ser algo mais brando, como um vídeo de você abraçando alguém. Já no grooming, o criminoso vai assediar o alvo por bastante tempo, até que ele consiga um nude. Outra coisa que me assusta bastante é o aliciamento de grupos criminosos com as nossas crianças, no mundo virtual. Hoje, para o crime, compensa muito mais aliciar o jovem para o mundo do crime através da internet, com um computador ou celular”, detalhou.

O especialista ainda divulgou dados da União Europeia, acerca de uma pesquisa feita recentemente com 8 mil jovens, entre 9 e 17 anos.

“22% deles afirmaram já ter se envolvido em incitação à violência; 18% disseram já ter participado de mercados ilegais relacionados a jogos online; 15% se envolveram com spam; 12% participaram de lavagem de dinheiro; e 11% já praticaram discurso de ódio. E isso tudo não é muito diferente do que ocorre aqui no Brasil. Então, o que podemos fazer para tentar diminuir ou combater esses números? Investimentos em educação e cidadania digital. Da mesma forma que os pais são estimulados a conversarem com seus filhos sobre a iniciação ao álcool e à vida sexual, que façam com a tecnologia. Além disso, é preciso ter o fortalecimento de combate e repressão aos crimes cibernéticos”, concluiu.

Já o médico oftalmologista Jaime Martins enriqueceu o debate falando sobre as dificuldades enfrentadas pelas crianças e adolescentes míopes, uma das consequências do vício digital.

“Isso que está sendo discutido hoje é reflexo de muito tempo. E, após a pandemia, as coisas se intensificaram muito. Nos países asiáticos, há mais de uma década, tem sido observada uma verdadeira epidemia da miopia. Houve um crescimento tão grande nesse período que, atualmente, mais de 50% das crianças e adolescentes asiáticas são míopes”, revelou.

Segundo o oftalmologista, o problema da miopia é que ela gera impacto não só pelo fato do jovem se tornar dependente dos óculos.

“A gente sabe, hoje, que a miopia elevada, acima de 3 graus, traz inúmeras consequências para a nossa saúde ocular. O paciente possui duas vezes mais chances de ter descolamentos de retina, que pode levar à cegueira. Além disso, há um risco maior de ter glaucoma, principal causa de cegueira irreversível no mundo”, alertou.

O diretor e professor Fernando Francelino discorreu sobre o assunto através da ótica educacional e pedagógica.

“Eu tenho acompanhado no dia a dia tudo que foi colocado aqui, em relação às afetações que as tecnologias têm proporcionado no desenvolvimento cognitivo, afetivo, emocional e social desses jovens. E eu noto que as diversas atividades, como o concurso de redação, a banda de música ou qualquer esporte, conseguem tirá-los desses ambientes monocromáticos, da frieza da tela, que não tem o calor humano nem a energia das relações sociais. E a gente sabe que isso é fundamental para o desenvolvimento da nossa sociedade como um todo. Afinal, se nós construirmos, hoje, uma sociedade sem relações humanas, que tipo de adultos nós teremos no futuro?”, indagou.

De acordo com o secretário adjunto de Administração da Secretaria Municipal de Educação, Aldo Fernandes, após a pandemia, surgiu a necessidade de mudarmos radicalmente a nossa forma de pensar e agir.

“E nós fizemos o que foi preciso naquele momento de pandemia. Nós precisávamos de uma saída, e foi daí que surgiram as videoconferências. Agora, nós precisamos regulamentar isso. A lei nasce de acordo com a necessidade da sociedade. Atualmente, nós estamos querendo regulamentar o uso das redes, da tecnologia. Então, é preciso ir atrás da equidade digital, do uso adequado das redes. Os professores agora estão sendo capacitados para usar os tabletes, juntamente com os alunos, mas com uma intencionalidade digital e pedagógica, ou seja, tudo de maneira regulamentada e controlada”, garantiu.

Para o secretário adjunto, o mais importante é que não nos esqueçamos da humanização dentro das salas de aula.

“O ideal sempre vai andar longe do real. Entretanto, o que nós, representantes dos poderes público e privado, devemos fazer? Buscar esse equacionamento, através de disciplina, regulamentação e planejamento dentro da sala de aula ou do setor em que estamos tratando com os jovens ávidos pelo conhecimento”, concluiu.
Finalizando os discursos, João Maria Mendonça, representante da Secretaria Estadual de Educação, afirmou que todos nós precisamos nos alfabetizar digitalmente na sociedade, mas com responsabilidade.

“A gente viu que esse é um tema transversal e multidisciplinar, que passa pela vertente da Segurança, da Justiça, pela Saúde Pública e pela Educação. Nós vivemos numa sociedade em que predomina a cultura da violência. E tudo isso termina no chão da escola, porque ela é a caixa de ressonância do que acontece na sociedade. E infelizmente nós não temos uma cultura de prevenção, que é essencial, o único caminho”, disse.

Ainda segundo João Maria, a proteção contra o impacto da dependência tecnológica e das redes sociais passa pela tríade família, escola e Estado.

“A família é o primeiro educandário. Os pais são os primeiros mestres. É na educação das crianças e adolescentes que são reveladas as nossas virtudes enquanto tutores. A escola também é importante. Essa temática deve estar incluída no projeto político-pedagógico da escola. E, enquanto Poder Público, a gente sempre está promovendo a cultura da paz e combatendo a questão do racismo, da misoginia, da violência contra os idosos, da xenofobia, além de tratar sobre a saúde mental dos nossos alunos. E essa audiência foi muito importante para nos trazer mais consciência de que devemos implementar a cidadania digital nos nossos processos formativos”, concluiu.