O governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva decidiu retirar o Brasil de uma declaração internacional contra o aborto e a favor do “papel da família” baseada em casais heterossexuais.
O documento, de caráter conservador, ficou conhecido como Declaração do Consenso de Genebra sobre Saúde da Mulher e Fortalecimento da Mulher. Entre seus principais pontos, afirmava que “não há direito internacional ao aborto nem qualquer obrigação internacional por parte dos Estados de financiar ou facilitar ” o procedimento.
Em nota, o governo Lula alega que “decidiu atualizar o posicionamento do país” e retirou o apoio do Brasil ao documento por considerá-lo que ele contém um “entendimento limitativo dos direitos sexuais e reprodutivos e do conceito de família”.
A declaração, assinada pelo governo de Jair Bolsonaro em 2020, marcou mais um episódio de alinhamento da gestão bolsonarista com a do então presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, idealizador da iniciativa.
As duas administrações se empenharam em combater o aborto internamente e em fóruns internacionais, colocando o tema como uma das principais bandeiras da “pauta de costumes”.
O tema entrou no centro dos debates da campanha presidencial do ano passado, o que fez Lula divulgar uma carta voltada ao eleitorado evangélico, se dizendo “pessoalmente contra o aborto” para tentar reduzir a larga vantagem de Bolsonaro nesse segmento religioso.
Ao todo, mais de 30 países assinaram a declaração. Outros governos alinhados à agenda conservadora de Trump e Bolsonaro, como Egito, Hungria, Indonésia, Arábia Saudita, Paquistão e Uganda também endossaram o documento.
Com o anúncio de hoje, o governo Lula segue os passos da administração Joe Biden, que também retirou os EUA da declaração após a saída de Trump e a chegada do democrata à Casa Branca. Em agosto do ano passado, a Colômbia abandonou a aliança internacional contra o aborto legal.
“Não se trata apenas da saída do governo brasileiro da Declaração do Consenso de Genebra sobre Saúde da Mulher e Fortalecimento das da Família, mas da aproximação do Brasil com outras entidades que de fato se preocupam com os direitos humanos e que têm uma tradição na criação de um ambiente político em que o diálogo e o respeito às minorias seja a tônica”, disse, em nota, o ministro dos Direitos Humanos e da Cidadania, Silvio Almeida.
A retirada do Brasil da declaração ocorre um dia após o Ministério da Saúde revogar norma que dificultava acesso ao aborto legal e marca mais uma mudança de postura de governo Lula em relação ao seu antecessor no enfrentamento da questão.
Para a ministra das Mulheres, Cida Gonçalves, a retirada do Brasil da declaração “significa uma mudança radical no campo das políticas para as mulheres”.
“É uma demonstração de que o atual governo respeita e valoriza as diversas formas de família e defende todos os seus direitos. O documento era um retrocesso em relação à legislação brasileira sobre direitos reprodutivos”, afirmou a ministra.
Na nota divulgada à imprensa, o governo Lula afirma que “reitera o firme compromisso de promover a garantia efetiva e abrangente da saúde da mulher, em linha com o que dispõem a legislação nacional e as políticas sanitárias em vigor sobre essa temática, bem como o pleno respeito às diferentes configurações familiares”.
A descriminalização do aborto é um dos temas que podem ser enfrentados pelo Supremo Tribunal Federal (STF) neste ano. A questão é alvo de uma ação apresentada pelo PSOL em março de 2017, e que aguarda até agora julgamento no plenário do tribunal.
A presidente do STF, Rosa Weber, é a relatora do caso e decidiu levá-lo para o gabinete da presidência, assim que assumiu o comando do tribunal, indicando que pretende pautar a ação antes de sua aposentadoria, em outubro deste ano.
Conforme informou a coluna, a tendência do STF é de não descriminalizar o aborto no Brasil até a 12ª semana de gestação.
Para o aborto deixar de ser crime, seria necessário o aval de ao menos seis ministros. Nos bastidores do STF, apenas três dos onze ministros são considerados votos seguros – hoje – para descriminalizar a interrupção voluntária da gravidez até a 12ª semana de gestação: Luís Roberto Barroso, Edson Fachin e Rosa Weber.
O Globo