Médicos do RN criticam a restrição ao acesso à cannabis medicinal

Conselho Regional de Medicina diz que resolução foi baseada em evidências. Já médicos como a psiquiatra Mariana Muniz consideraram medida um retrocesso. — Foto: Reprodução

O uso de cannabis medicinal foi restringido pelo Conselho Federal de Medicina (CFM), na ultima terça-feira (11). Contudo, após receber críticas, o conselho resolveu, nesta quinta-feira (20), abrir consulta pública à população para tratar do assunto, que está prevista para acontecer de 24 de outubro a 23 de dezembro deste ano. A resolução autoriza o uso da substância apenas no tratamento de epilepsias em crianças e adolescentes que não respondem à terapias convencionais. Para alguns médicos, a decisão é um retrocesso pois priva outros pacientes de terem acesso ao tratamento.

Com a normativa, apenas as especialidades de neurologia, neurocirurgia e psiquiatria poderão prescrever a substância. A decisão faz com que outras especialidades que já a prescrevem precisem recuar, tendo em vista que o conselho rege a profissão e pode aplicar punições aos profissionais. O Conselho Federal e os Conselhos Regionais de Medicina são autarquias federais, com autonomia administrativa e financeira. Esses conselhos são compostos por médicos conselheiros, aos quais competem julgamento de questões e a aplicação de penalidades, em caso de indicação.

De acordo com o presidente do Conselho Regional de Medicina do Rio Grande do Norte (Cremern), Marcos Jácome, a abertura para consulta pública não revoga a resolução. “O CFM segue pautando-se pelas evidências e pela ética. No momento, foi necessário abrir a consulta, deixar que toda a sociedade se manifeste”, diz. Ele explica que o CFM colocou na resolução o que já é comprovado pela ciência e que o conselho irá respaldar o uso da substância de acordo com a quantidade de evidências científicas que comprovem seu uso em outros casos se não os listados.

O médico reumatologista, doutor e professor da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Leonardo Hoff, é um dos que irá obedecer a normativa, embora tenha ressalvas quanto a decisão. “É muito triste que o CFM tenha regulado desta forma, porque é sempre muito liberal”, afirma. De acordo com ele, a decisão evidencia um viés político. “Foi super liberal na pandemia com os médicos que quisessem para tratar covid e agora vem com essa restrição. A gente não entende mesmo, porque é algo, assim, mais político do que científico”, afirma.

De acordo com ele, o principal impacto é o manejo de pacientes que tem dor crônica e não respondem aos tratamentos convencionais. “É o público que mais se beneficiou nessa questão da cannabis. Muitos utilizando o remédio com o benefício e agora corre o risco de ficar sem”, conta. “Eu sou médico, se eu prescrever, eu corro o risco de perder minha licença para praticar medicina no Brasil. É um tipo de punição prevista para quem descumpre a orientação do CFM”, explica. O reumatologista diz que o ponto é saber quem vai se arriscar e continuar com a prescrição. “É uma norma que deve ser seguida”, completa.

Hoff explica que, antes da normativa, qualquer médico poderia prescrever substâncias derivadas da Cannabis, pois no Brasil existe uma certa variedade de produtos autorizados para importação e associações que já produzem com autorização, de maneira legal. Em seguida, o paciente precisa realizar um cadastro na Anvisa e comprar a substância prescrita com a receita dada pelo médico. Apesar da diversidade, a nova regra veda a prescrição de cannabis in natura para uso medicinal e quaisquer derivados que não seja o Canabidiol.

A diferença entre as substâncias é a quantidade de CBD – Canabidiol – e THC – Tetrahidrocanabinol. A primeira mais usada no tratamento de algumas condições como Parkinson, Alzhaimer e Esclerose Multipla pois possui mais ativos terapêuticos. O médico explica que podem ser tratadas com CBD, além das listadas, doenças que causam dor crônica, como a Fibromialgia. A segunda substância é um tanto mais polêmica, pois é responsável por efeitos psicoativos e neurotóxicos.

“O uso do canabidiol está crescendo no mundo inteiro. Diversos países já liberam, tanto o canabidiol sintético, quanto o natural para diversas condições. Claro que, como qualquer medicamento, tem seus riscos. Então, o médico e o paciente sempre decidem qual é o melhor tratamento baseado nessa balança dos riscos com os possíveis benefícios que o paciente vai receber”, comenta Leonardo Hoff.

A psiquiatra e neurocientista, Mariana Muniz, também fomenta a ideia de retrocesso quanto a normativa. Apesar da decisão não ter o mesmo impacto no exercício da sua profissão, ela entende que a discussão perpassa diversos pontos. “Isso tem repercussões que não passa só pela técnica. A repercussão nos pacientes vem pela restrição, por exemplo”, compartilha. De acordo com a psiquiatra, a discussão perpassa o viés politico e social. “É uma nota que gerou mais desmobilização do que mobilização”, explica.

Muniz comenta que a normativa também divide opiniões. “O impacto foi grande, porque gera insegurança, divide opiniões. Não gera um clima de debate honesto. Então, o impacto é grande e é difícil de medir”, continua. De acordo com ela, o conselho deve regulamentar, mas precisa ser claro quanto as técnicas nas quais se baseia a regulamentação. “É uma norma de um conselho, de uma autarquia regulamentar. Não é qualquer coisa, os médicos não podem fazer o que querem. O conselho deve sim regulamentar essas práticas, mas deve fazer isso de forma tecnicamente clara”, completa.

CFM e Anvisa

Contradições podem ser apontadas quanto as divergências entre o conselho e a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), que autorizou a fabricação e importação de produtos de cannabis para fins medicinais desde 2019. Por isso, o Ministério Público Federal (MPF) instaurou um procedimento preparatório para apurar a legalidade da resolução do CFM. Conforme publicado pela Agência Brasil, a investigação vai apurar se há compatibilidade entre a resolução com o direito social à saúde.

O MPF requisitou à Anvisa documentos que mostrem evidências científicas para sustentação das atuais autorizações para uso medicinal da Cannabis no Brasil. Em contrapartida, solicitou ao Conselho Federal, documentos de base científica que sustentem a nova resolução. Ao Ministério da Saúde, foi requisitado informações sobre repercussões administrativas, financeiras e técnicas no Sistema único de Saúde (SUS) das resoluções da Anvisa e do CFM. O procedimento foi instaurado na ultima segunda-feira (17) com prazo para respostas de 15 dias. As informações são da Tribuna do Norte.