Historiador e professor Helder Macedo presta homenagem póstuma a Sinval Costa

Sinval Costa é irmão do deputado estadual Vivaldo Costa e morreu em Recife (PE) aos 90 anos. — Foto: Suerda Medeiros

Mês da Gloriosa Senhora Santana começou nublado, em Caicó, com nuvens de uma profundidade que lembram a alma de Sinval Costa, historiador erudito e genealogista seridoense, que nos deixou há um mês. A magnum opus desse intelectual é “Os Álvares do Seridó e suas ramificações”, publicada originalmente em 1999 (edição do autor) e com uma edição fac-similar recente, do Sebo Vermelho.

As gerações atuais (e, também, as futuras) que se interessam pela busca de nossas ancestralidades não podem deixar de reconhecer o mérito do autor e de sua obra. Sinval Costa nasceu em 1931. Engenheiro de formação, desde cedo, no seio familiar, teve contato com diálogos que remetiam às pessoas que constituíam a sua árvore genealógica. Esse fato o impulsionou, a partir dos anos 1950, a aprofundar uma investigação sobre a família Álvares (ou Alves) do Santos, que, dos Sertões do Seridó, do século XVIII em diante, radicou-se para diversos pontos do atual território brasileiro.

Suas primeiras experiências em busca de escavar a história dos Alves dos Santos, família a que pertence, foram marcadas por entrevistas com contemporâneos, em sua grande maioria, idosos, da região em que vivia, cujos resultados foram transplantados, com lápis, para o papel. Paralelamente à leitura de obras já publicadas sobre genealogia no/do Seridó, Sinval Costa teve acesso a arquivos eclesiásticos e jurídicos, localizados em secretarias paroquiais e cartórios de cidades nordestinas. Esse historiador é de uma época em que não havia as facilidades de equipamento tecnológico disponível para que mananciais arquivísticos fossem compulsados, via fotografia, num curto decurso de tempo. A dificuldade do acesso às fontes, pois, bem como, o tempo dispendido para transcrevê-las, equivale à honradez, respeito e sobriedade com que tratou nossos antepassados.

Durante determinadas fases de sua pesquisa, esse genealogista amargou a penúria a que, por vezes, os arautos de Clio são submetidos: o bloqueio a acervos arquivísticos, ou seja, a não concessão de acesso a cartórios ou secretarias paroquiais para fins de pesquisa. Essa situação ocorreu com frequência no passado e, infelizmente, a julgar pelo período pré-pandemia de Covid-2019, continuou ocorrendo em arquivos na região seridoense, atitude infeliz de gestores que não veem com bons olhos pessoas escarafunchando documentos públicos sob sua guarda. Certamente, arrisco, medo do que os “papéis velhos” – como são vistos, infelizmente, por parte dos órgãos detentores da custódia de documentos históricos – poderão fazer vir à tona a partir do olhar e interesse de pesquisadores. Não é de hoje que historiadores são mal vistos por pessoas que ocupam altos cargos no poder, considerando que o conhecimento histórico produzido, a depender dos posicionamentos de quem o constrói, pode revelar tramas obscuras, tirar o véu que camufla desigualdades, denunciar perversidades, e dar a conhecer, para a população, injustiças cometidas contra pessoas ou segmentos sociais enquadrados nas margens.

O cotejamento entre fontes orais, bibliografia e documentos manuscritos, durante décadas, levou à preparação e edição de “Os Álvares do Seridó”, uma obra indispensável para quem deseja se aprofundar na história e genealogia do povo seridoense. Embora o objetivo do livro seja esmiuçar a descendência de Domingos Alves dos Santos e de Joana Batista da Encarnação, o autor não apresenta, apenas, as listas de pessoas cuja ascendência remonta ao patriarca da fazenda Lajes, de origem lusitana. Ele promove uma abordagem genealógica dos Alves dos Santos em que, além dos nomes de pessoas, seus marcos vitais (nascimento, casamento, morte) e lugares por onde passaram, detalha fatos do cotidiano, relacionamentos fora da legalidade religiosa ou civil e ligações de familiares com pessoas de outras qualidades (como pardas e caboclas).

Quem acessa as páginas do livro, assim, conhecerá trajetórias de pessoas que morreram com altas dívidas, que ocuparam cargos importantes na administração judiciária e camarária da antiga Vila do Príncipe, que foram pequenos, médios e grandes criadores de gado, que tiveram filhos antes de casar, que morreram na velhice ou na juventude… Fatos cotidianos construídos a partir do que foi coletado, seja na memória dos descendentes da família Alves, seja nos documentos que continuam a viver nos arquivos. É, assim, uma história da família Alves dos Santos, mas, também, de parte da sociedade sertaneja do Seridó, do século XVIII ao século XX, suas vicissitudes, continuidades e descontinuidades.

Além disso, de forma ousada e acertada, Sinval Costa conclui a obra com “Tópicos da Genealogia Seridoense”, onde nos apresenta, com base em fontes paroquiais coletadas, casamentos de índios (incluindo alguns de Nação Tapuia), escravos (crioulos, pretos, pardos, de nação Angola), portugueses (oriundos de diversas freguesias no território de Portugal) e “casais de outrora”.

Uma aposta, feita pelo autor, na ideia de que não é possível produzir estudos genealógicos focados nos sertões sem considerar o encontro – violento, na grande maioria das vezes, não nos esqueçamos! – entre os nativos que já habitavam as ribeiras do que hoje chamamos de Seridó; os adventícios (cristãos velhos e, com segurança, descendentes de cristãos novos, oriundos do Império Ultramarino Português) e seus filhos já nascidos em solo da América; os pretos ou negros, forçosamente cativados em África e trazidos para integrar o trabalho compulsório em fazendas de criar gado e lavouras de roça de mandioca; e os pardos, caboclos, mamelucos, curibocas, mulatos, cabras, fruto das misturas entre esses povos.

Em suma, “Os Álvares do Seridó e suas ramificações”, por essas e outras qualidades, deve ser uma fonte de inspiração para as gerações que manifestam interesse em realizar investigações alicerçadas na Genealogia, com fins em alcançar o conhecimento acerca das nossas ancestralidades, sejam quais forem – indígenas, pretas, luso-brasílicas, mestiças. Uma ressalva: como todo livro de enfoque genealógico, é incompleto e pode ter equívocos, que, certamente, serão corrigidos a posteriori, como mesmo o autor admite, no texto introdutório às descrições dos descendentes dos Alves dos Santos.

Essas breves palavras sobre o livro, além de emitirem um juízo crítico, emolduram a minha gratidão a Sinval Costa, que, desde meados dos anos de 1990, foi um dos mestres que me guiou no labirinto da pesquisa histórica e genealógica. Generoso, abnegado e otimista com o futuro, forneceu-me fontes preciosas, por ele coletadas em acervos no Seridó; alertou-me da fatalidade de encontrar arquivos bloqueados para pesquisa; instruiu-me nos cuidados que devemos ter com a homonímia em Genealogia; e recordou-me, constantemente, de que o povo do Seridó, embora tenha participação luso-brasílica na sua etnogenia, igualmente era devedor dos índios, dos negros e dos mestiços.

Sinval Costa possibilitou-me pensar a partir de pistas importantíssimas acerca do que se constituía a Ribeira do Seridó em termos do seu despovoamento da maioria indígena e povoamento colonial, entre o fim do século XVII e primícias do século XVIII. Refiro-me, particularmente, às informações coletadas em documentação manuscrita e fontes orais acerca da presença indígena dentre os moradores da Freguesia do Seridó (e, antes disso, à índia Inês Ferreira) e do crioulo forro Nicolau Mendes da Cruz como um dos mais longevos colonizadores de terras que hoje fazem parte da região do Seridó, nos anos de 1710. Ainda hoje, continuo procurando recontar as trajetórias dessas e de outras pessoas, invisibilizadas na historiografia oficial que produziu versões sobre a história dos Sertões do Seridó.

Espero, um dia, mestre, que possamos nos reencontrar. Na oportunidade, contarei as novidades que as pesquisas trouxeram sobre esses e outros assuntos da genealogia seridoense, inspiradas em seus ensinamentos.

Helder Macedo
Historiador e professor de História
Caicó, RN, 1º de Santana de 2021.